Quero falar sobre Rei Lear, etarismo e tecnologia. Será que consigo?
BOBO Se tu fosses o meu bobo, titio, eu te botaria no relho por ter ficado velho antes da hora.
LEAR Como assim?
BOBO Não devias ter ficado velho antes de ficar sábio.
Talvez não tenha saída para o sofrimento da velhice. Acrescento também da dependência. Existe tragédia tanto em Lear com sua ausência de sabedoria, como em Logan Roy (personagem de Succession interpretado por Brian Cox), com sua lucidez tamanha que o fez perceber o trágico firmado nos ridículos filhos.
Etarismo é o nome que se dá ao preconceito contra pessoas com base na sua idade. Existia (e existe em algumas culturas, eu sei) um tempo em que as pessoas idosas estavam incluídas de forma ativa na sociedade especialmente para transmitir conhecimentos e compartilhar experiências acumuladas nos muitos anos de vida.
Assim como o livro de ficção científica de Olga Ravn, Os funcionários, aborda a transformação que objetos podem trazer a seres humanos, robôs, híbridos, a tecnologia inserida nas sociedades foi descartando a necessidade de procurar ensinamentos em pessoas mais longevas. O professor Mário Sergio Cortella e a jornalista e escritora Milly Lacombe me trouxeram outro elemento importante durante uma conversa no podcast Outros Tempos (referências ao final desse texto).
A memória guardada pelos antigos passaram para os livros, depois para os computadores e hoje está na nuvem. Será que alguém aprende alguma coisa prática com outra pessoa que sabe? Ou assiste a um vídeo no youtube? Uma vez estava assistindo a uma "influencer de livros" no instagram que, depois de postar rotina fitness, skincare, cozinha, etc, respondendo a um comentário, disse indignada que a pessoa procurasse a receita no google ao invés de perguntar a ela. Pronto, pensei, acabou a hipótese de gerar uma relação de aprendizagem.
Outro momento vi um comunicador dizer que começou a se exercitar em uma academia (dessas famosas) especialmente porque ele conseguiu fazer o processo de matrícula por aplicativos sem conversar pessoalmente com nenhum humano. Dizia que já havia se irritado com atendentes de academia e por isso não queria saber de gente.
Pensei no privilégio que tenho em no meu trabalho ter sempre pessoas indo até mim para perguntar alguma coisa; e em poder fazer o mesmo sem ouvir de um colega para eu ler em uma norma ou um decreto ou em um procedimento ou perguntar ao chatGPT. Por enquanto, estou salva. Até quando?
Talvez a internet traga um roteiro prático, ou um volume amplo de informações, melhor que um ser humano mais vivido. Só que experiência na vida real do tipo medos, perdas, frustrações, fé, retomadas, coragem, e tantos outros, ainda pode ser melhor percebida, ouvida e aprendida com alguém que viveu mais. E, se não sobrar nem isso, com certeza saber da própria experiência da velhice irá ser suficiente para a gente caso tenhamos a sorte de chegar até ela.
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REFERÊNCIAS DO TEXTO:
Outros Tempos — Milly Lacombe e Cortella- Ep 6
A citação foi de Rei Lear de Shakespare — edição da Penguin com tradução de Lawrence Flores Pereira